Uma alface por favor...

Havia no ar um silêncio estranho

um cheiro a perigo, a medo

e um vazio sem tamanho.

Estava aparentemente tudo na mesma

só que não havia pessoas

e as que havia

pareceram-me estranhas,

usavam luvas de plástico 

e umas máscaras que lhes cobriam a cara,

afastavam-se de mim assustadas,

olhavam-me desconfiadas.

Reparei que não havia sorrisos

nem sequer com o olhar,

havia até alguma agressividade

à proximidade de alguém

não vi ninguém abraçar-se

cumprimentar ou até mesmo beijar

não senti delicadeza 

as pessoas à minha volta pareciam robots 

apressados,mecanizados,ausentes

-Pode-me dar uma alface, por favor?

-Não pode passar daí ,afaste-se!

Não entendia o que se passava

de repente parecia que tinha chegado a outro lugar

a um lugar hostil

a um lugar onde nunca tinha estado.

Acordei nervosa e assustada

ufa, foi um pesadelo,

fui à cozinha beber um copo de água

e reparei nas luvas pousadas na cadeira

e numa máscara pendurada na maçaneta da porta

31/03/2020

Nani Carvalho

O som do silêncio...

É um chorar baixinho por trás das palavras sem sorrisos
que contam uma história que é de todos nós,
uma sucessão de dias que mais parecem anos,
onde tudo o que sabemos real ,
seja apenas e só, expectativas falhadas
 dos números que nos comparam a outros lugares da Europa.
Parecemos pássaros tristes a esbanjar a última esperança,
 sem saber que é a última.
No que esperamos e desesperamos,
trocávamos  tudo pela Paz,
 que pode não vir.
Resta-nos reaprender a sentir,
 valorizar o que até aqui nem dávamos conta que tínhamos,
coisas simples que se transformaram no bem mais precioso para além da vida e do amor.
Então, depois de tudo voltarmos a aprender,
virá o abraço sentido, a solidariedade,
a tolerância e o respeito pelo Mundo.
 Só depois chegará a alegria,,
a lucidez e finalmente a última coisa,
 o riso,que será ainda de cansaço.

Nani Carvalho

Covid-19...

Chegaste sorrateiro no silêncio

implacável, feroz e agressivo

estragando a nossa Paz

e baralhando os temas dos nossos sonhos

Queríamos festejar a Primavera

com a emoção que nos lembrasse aquelas outras

num brinde à vida, e ás flores que voltavam a nascer

cheias de cor e de esperança

sabes

de facto apanhaste-nos de surpresa

tiraste tudo do lugar do costume

roubaste a liberdade,a segurança

 e quem sabe o futuro

de facto não estávamos preparados...

e eis que a incerteza nos enche de medo

a angústia ocupa agora cada palavra

o som da madrugada é agora o som dos dias vazios,

das semanas e dos meses

já nada se parece com nada

nem sequer o pôr do sol

que visto através da minha janela, quadrada e pequena,

me lembra de como será a prisão.

Já nada é a mesma coisa...

foi tão rápido

tão inesperado

e tão cruel

que nunca mais será igual

Nani Carvalho

Hoje é Domingo...

Arrancando das árvores uma orquestra 

pássaros,folhas e flores

parecem desafiar o poeta

devo fingir que não percebo?

perdoo- vos

  as palavras doces da musica que cantam

o som do bater de asa de galho em galho,

perdoo -vos até  o que me lembram

recordações quietas daquele sorriso distante

de coisas e pessoas que nunca voltarão.

Persigo em vão as lembranças

tudo o que encontro são sombras

lugares  frios e vazios.

Hoje é Domingo...

Emprestar -te-ei sempre o meu sofá

seguir-te-ei sempre

através da nostalgia

 de todos os sorrisos e de tudo...

É ai que vivo

sem outro paraíso que o inferno

tu serás sempre o meu pecado.

Nani Carvalho

in : "deixa a paz e leva o fogo"